INTERESSE PÚBLICO
Por Cristiana Fortini
A existência de normas que abordam a execução indireta, mediante a contratação de serviços por órgãos e entidades da administração pública, não é novidade.
O Decreto-Lei 200/67[1], fruto de estudos desenvolvidos no âmbito da Comissão Especial de Estudos da Reforma Administrativa (Comestra), com vistas a redesenhar a administração, já previa a execução indireta, indicando a preferência pela terceirização para a execução das atividades-meio.
Assim, mesmo que àquela época a Constituição da República não fizesse referência expressa ao princípio da eficiência, e ainda que ambientado em cenário de administração púbica burocrática, havia, e o decreto-lei assim bem simboliza[2], preocupação com a otimização da função administrativa[3].
Posteriormente, a terceirização foi objeto de leis e atos normativos, a ela se referindo indiretamente a Lei 8.666/93 em diversos dispositivos, com destaque para os artigos 6º, VIII; 57, II, e 71.
O Decreto Federal 2.271, de 7/7/1997, também cuidou da matéria, além da Instrução Normativa 5/17, editada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
O assunto volta à pauta com a revogação do referido ato normativo pelo Decreto Federal 9.507/18, editado no último dia 21 de setembro, alvo de críticas pelos que nele reconhecem abalo à regra do concurso público, de matriz constitucional.
Vejamos o que prevê o atual decreto em comparação com o decreto revogado. O olhar será dirigido exclusivamente aos contornos e à extensão da terceirização ali admitida ou incentivada, coluna vertebral do ato normativo. A parte reservada ao teor e à fiscalização dos contratos, praticamente inexistente no decreto revogado, merece um artigo exclusivo.
O Decreto Federal 2.271/07 alcançava a administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diversamente do decreto atual, seus tentáculos não envolviam as empresas estatais federais. A expansão do alcance para empresas estatais reflete o contínuo regramento dessas entidades, com evidente destaque para a Lei 13.303/16.
Segundo informa o Ministério do Planejamento[4], a pretensão é uniformizar a matéria em todo o âmbito federal. Se o intuito é a disciplina padronizada, evitando, por exemplo, cláusulas contratuais antagônicas, enlaçar as empresas estatais federais é crucial. Afinal, ali se detecta expressivo número de terceirizações, segundo apuração realizada pelo TCU. Deixá-las à margem do decreto esvaziaria o espírito uniformizador.
A maior repulsa provocada pelo atual decreto estaria no alargamento da terceirização na administração pública federal. Os diversos comentários disponíveis na internet rotulam o Decreto 9.507/18 de inconstitucional por ofender a regra do concurso público de que cuida o artigo 37, inciso II. Avaliam que o Decreto 9.507/18 é resultado do julgamento favorável à terceirização da atividade-fim nas empresas pelo STF[5]. Consideram que a ausência do rol de atividades passíveis de terceirização sinaliza a irrelevância da clássica distinção entre atividade-fim e atividade-meio para delimitar a licitude da execução indireta.
O centro irradiador de preocupação está nos artigos 1º e 2º, assim redigidos:
Art. 1º Este Decreto dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Art. 2º Ato do Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão estabelecerá os serviços que serão preferencialmente objeto de execução indireta mediante contratação.
Percebe-se que as regras atuais não qualificam as atividades passíveis de execução indireta, nada aludindo a atividades-fim ou meio, e não enumeram ou exemplificam os serviços objeto da contratação.
A comparação entre os atuais artigos 1º e 2º com o que dispunha o artigo 1º do revogado Decreto 2.271/07 revela a diferença redacional.
Dizia a norma revogada:
Art. 1º. No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.
O antigo arigo 1º era, pois, explícito, afirmando o terreno em que a terceirização poderia ocorrer, prevendo-a para atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituíam a área de competência legal do órgão ou entidade, enquanto o seu parágrafo 1º, mesmo sem exaurir, indicava funções em que a terceirização era não apenas acolhida, mas preferencial.
De fato, a mudança sugere um possível alargamento do emprego da terceirização. Não porque inexiste o elenco de serviços que poderiam contar com mão de obra externa, mesmo porque a lista do ato normativo anterior era exemplificativa, mas substancialmente diante da ausência de referência à natureza da atividade que poderá ser objeto de contratação. Some-se a isso o fato de que, a depender do conteúdo do ato a ser produzido pelo Ministro, a que se refere o artigo 2º, a execução indireta avançará para além do território habitual.
A opção por nova redação não pode ser ignorada. Não é desproposital o desaparecimento da alusão ao enquadramento da atividade.
Sob esse ângulo, compreende-se o repúdio que a norma tem provocado, partindo-se do pressuposto de que a mudança representaria um risco à carreira pública.
Mas o Decreto 9.507/18 repete o que já consta da Instrução Normativa 5/17, repudiando a execução indireta na administração direta, autárquica e fundacional em casos que[6]:
Não se obstaculiza, consoante prevê o parágrafo 1º do artigo 3º, a execução indireta dos serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios relativos aos itens acima. Ou seja, proíbe-se a contratação das atividades centrais, mas permite-se a entrega das tarefas satélites. Igualmente não há novidade, diante do que já informa a IN 5/17.
O parágrafo 2º do artigo 3º, todavia, não autoriza a execução indireta das atividades acessórias relativas ao poder de polícia. Nesse aspecto, a regra é mais restritiva do que a constante da IN 5/17.
Assim, se por um lado os artigos 1º e 2º do novo decreto aumentam a insegurança sobre o que no futuro se desejará terceirizar, reforçam-se cenários em que isso não poderá ocorrer.
O decreto, todavia, disciplina de outra forma a contratação pelas empresas estatais, dela cuidando o artigo 4º.
O referido artigo, embora repita, em síntese, a proibição da contratação quando os serviços desejados demandarem profissionais com atribuições inerentes aos cargos constantes dos planos de cargos e salários, não a veda de forma absoluta.
O parágrafo 3º afasta a restrição quando se tratar de cargo extinto ou em processo de extinção, redação semelhante a do inciso IV do artigo 3º, aplicável à administração direta, autárquica e fundacional, já comentado.
Mas o que mais chama atenção é a parte final do caput que estabelece que a vedação não persiste se contrariar os princípios administrativos da eficiência, economicidade e razoabilidade, indicando como uma das hipóteses a impossibilidade de competir no mercado.
Assim, não estaria vedada a execução indireta, ainda que os serviços ambicionados exigissem profissionais com atribuições inerentes aos cargos referenciados no plano de cargos e salários, se a medida pudesse sacrificar a competitividade no mercado.
De todos os dispositivos aqui citados, esse é o que merece maior atenção porque o argumento da competitividade poderá ser empregado para alavancar o esvaziamento dos empregos públicos nas estatais, em especial considerando que o decreto não aparta as atividades entre centrais ou acessórias.
Há, sim, em especial no campo dessas empresas, um sinal de flexibilização no ar.
Contudo, a aplicação do decreto deverá, por óbvio, observar a Constituição da República, que oferece um conjunto de normas, a remeter a um quadro de trabalhadores próprio. Não sem razão a Constituição menciona os servidores estatutários e os empregados públicos. Vale dizer, a Constituição da República prevê a existência de vínculo direto com os trabalhadores, observado, como regra, o disposto no artigo 37, inciso II.
Também importante considerar que a decisão do STF sobre a constitucionalidade da terceirização de atividade-fim não se debruçou sobre as peculiaridades da administração pública. Daí não ser possível concluir, apoiando-se na ADPF, pela regularidade da contratação de atividade-fim no âmbito da administração pública.
Claro que não se pode desconsiderar o voto do ministro Gilmar Mendes que menciona a dificuldade de se diferenciar a atividade-meio da atividade-fim. Mas, salvo melhor juízo, os demais argumentos apresentados pelos ministros para afirmar a constitucionalidade se aplicam ao campo privado, sendo imprestáveis para a esfera pública em especial diante das diversas regras peculiares a esse setor.
Assim, ainda que se insista em elastecer a terceirização, quer nos parecer que o potencial do decreto esbarará na muralha da Constituição da República. Bom, pelo menos até um pronunciamento em sentido contrário pelo STF.
[1] Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada: [...]
§7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle, e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos da execução. (grifos nossos)
[2] A análise do decreto-lei deve considerar o momento de sua edição e o perfil de administração pública ali delineado.
[3] Entendemos que a busca por eficiência não caracteriza apenas o modelo gerencial de administração pública. O que há são oscilações do que seria eficiência, ora compreendendo-se o procedimento como instrumento bastante para o alcance do resultado; ora entendendo necessária a flexibilidade litúrgica.
[4] http://www.planejamento.gov.br/noticias/ultimas-noticias/decreto-uniformiza-procedimentos-na-contratacao-de-terceirizados-no-executivo-federal
[5] ADPF 324
[6] A conferir a equivalência entre o artigo 9º da IN5/17 e o artigo 3º do Decreto 9.507/18
[7] Artigo 1º, parágrafo 2º.
Cristiana Fortini é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).
Revista Consultor Jurídico/Fetraconspar, 28 de setembro de 2018.